Silvestre Varandas: "Costumam dizer que sou doutorado em trapologia"

No mundo das artes e do espetáculo o nome de Silvestre Varandas é a referência na escolha de um tecido, seja para o figurino de uma produção de época ou para as fantasias das Marchas Populares. Além, claro, de aconselhar a clientela habitual da Ouro Têxteis, uma das mais antigas casas do ramo na Rua Áurea, em plena Baixa lisboeta
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Podia ter saído de um filme dos anos 1950, gravata em malha de seda, sapatos de atacadores, discurso matizado por um fino sentido de humor. "Sempre gostei de um estilo rétro, dessa mistura de coisas que temos há muito tempo com uma ou duas novidades." O colete azul escuro debruado a dourado velho identifica discretamente os funcionários da Ouro Têxteis, uma das mais antigas lojas do ramo na Baixa, e Silvestre Varandas - "senhor Varandas" para os habitués - é o decano da casa. Sabe a história dos tecidos um a um. Sabe que "há tecidos que desapareceram, como o cotim militar, outros que ressuscitaram, como o burel ou a chita", sabe que agora "vende-se muito algodão, tanto para vestuário como para o chamado artesanato urbano", e que "a licra vende-se sempre, o artigo de cerimónia também". "Costumam dizer que sou doutorado em trapologia" diz ele, e está a ser modesto. Sem nunca largar o fio da conversa, atende uma adolescente que procura "suplex" (tecido da família da licra), aconselha uma cliente que podia ser avó dela e busca vaielas (espécie de popelina), guia uma outra na escolha de um linho.

Silvestre Varandas nasceu "na encosta sul da serra da Estrela", na Covilhã, e quando o pai casou pela segunda vez, viajou com ele para a capital. Lembra-se de "fazer a primária no torreão do Palácio de Queluz, quando a escola ainda funcionava lá" mas a verdadeira instrução foram os Armazéns Conde Barão, onde começou a trabalhar com 11 anos, em 1963, e ficou duas décadas. "Era uma grande empresa, vendia de tudo, tínhamos de ter conhecimentos sobre uma enorme variedade de artigos." Vestuário também, mas não apenas.

Chegou à Ouro Têxteis menos de um mês depois de esta abrir portas, em outubro de 1986, e o apresentar a uma clientela "mais complexa e exigente do que estava habituado, que comprava peças a 20 contos o metro sem problema". A atenção ao cliente e ao detalhe, o conhecimento das peças "tudo foi sendo assimilado a pouco e pouco"."É um setor difícil, é necessário um conhecimento global mas quando se gosta temos sempre a curiosidade de saber mais. É preciso estar atento às tendências, aos materiais novos." Às sedas, às organzas, aos tweeds e aos bouclés, há que juntar os tecidos tecnológicos, "as microfibras, as fibras térmicas, as lãs impermeáveis".

Fala da Ouro Têxteis com orgulho: "Somos pioneiros em muitas coisas. Há 25 anos, por exemplo, arriscámos num material novo, a licra, um artigo que mais ninguém tinha." Arnaldo de Vasconcelos e as filhas, proprietários da casa, são uma outra família a juntar à própria, dois filhos, ela com queda para as artes. Vivem perto de Sintra e todos os dias Silvestre Varandas faz o caminho de ida e volta no comboio que começa e acaba no Rossio.

A casa profissional foi recentemente desinstalada do 260 para o número 182 da Rua Áurea, as obras ainda dividem o espaço da nova loja que vai atravessar o quarteirão e estender-se até à Rua dos Sapateiros, por entre arcadas pombalinas e largas prateleiras de metal que acomodam as peças de tecido, mais de oito mil. "Além do vestuário do dia-a-dia vendemos para todo o tipo de espetáculos, do teatro ao circo, das danças de salão aos filmes de época, à patinagem artística e à publicidade." E para as Marchas e desfiles de Carnaval do país inteiro, para as artes plásticas e o design de moda e para os artistas de rua. "O mais famoso homem-estátua da Baixa é cliente fiel. A nossa casa é tão diversificada que conseguimos arranjar sempre solução para o que se procura." Fala de figurinistas e cenógrafos, alguns desaparecidos, de Jasmim de Matos, Vera Castro, Juan Soutulho, José Costa Reis, Helena Reis ou Mariana Sá Nogueira e também da novíssima geração da estamparia representada pela Bainha de Copas. Os nomes e os contactos estão guardados num livro de capa de couro, "o caderno dos segredos. São tantos nomes e há tantos anos que já não se tem memória para os guardar a todos. Conheço todos os grandes figurinistas, pessoas luminosas com ideias incríveis. Aprendi muito com eles, sobre os tecidos usados em determinadas épocas por exemplo".

Das novelas aos filmes de Manoel de Oliveira, de La Féria ao Teatro Nacional, o senhor Varandas é um espectador atento. Vê televisão como um entomologista identifica borboletas, procura tecidos nos telefilmes, nos concursos, nas notícias. "Ainda ontem vi a Maria do Céu Guerra a falar sobre a sua personagem na nova peça que está em cena na Comuna (Play Strindberg) e o tecido do vestido é daqui, reconheci-o logo." Fala da Guerra dos Cem Anos, de Agostinho da Silva e Pardal Monteiro, do Parque Mayer e das lojas da Baixa que ocupavam prédios inteiros com a mesma sabedoria com que analisa o desaparecimento dos chapeleiros e alfaiates e modistas, um mundo artesanal e singular que o turismo dos dias de hoje quer levar para casa. "Lembra-se quando andava por aí um anúncio nos autocarros em que a modelo tinha um vestido estampado a azulejos? Não calcula a quantidade de turistas que vieram à loja à procura desse tecido...que não existia. Temos de apostar mais naquilo que é nosso - nas nossas filigranas, nas nossas rendas, nos nossos motivos tradicionais - também na estamparia de tecidos."

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